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A construção de valores morais em língua portuguesa

A língua e a constituição de um vocabulário partilhado têm se mostrado campo fértil de possibilidades para o estudo das sociedades humanas no tempo. Inspirado em tais possibilidades, o grupo “Escritos sobre os novos mundos...” surgiu com o propósito de construir uma história dos modos de produção social da verdade em língua portuguesa. Dito desse modo, tal objetivo pode parecer demasiado amplo, carente de recorte, todavia, o que se pretende, malgrado o alargado arco temporal – que se estende do século XV às décadas iniciais do século XX –, é mais limitado. Elegemos, a princípio, duas sociedades, historicamente articuladas: a sociedade portuguesa e aquela que veio a ser, a partir dos séculos XVIII e XIX, denominada brasileira. Procuramos isolar, no interior dessas sociedades, os processos envolvidos na constituição moral dos seus membros, para tanto, reduzimos o nosso escopo a alguns conjuntos discursivos que consideramos fundamentais para entendermos aspectos de uma moral socialmente partilhada de um e outro lado do Atlântico. O ponto de partida escolhido é o século XV em terras portuguesas, momento em que se prepara uma expansão marítima que ligará o mundo europeu a outros mundos e desencadeará um processo de reestruturação das bases morais que sustentam a sociedade portuguesa e que desembarcarão com os colonizadores nesta parte do Novo Mundo. Para explorar este momento específico, o primeiro núcleo do projeto colocará em foco não apenas os escritos elaborados em língua portuguesa pela primeira vez no Quatrocentos e início do Quinhentos, mas também traduções ou compilações para essa língua realizadas nesse período em que, como foi adiantado, a grande expansão é preparada e levada adiante.

Com o propósito de analisar as três dimensões essenciais do comprometimento pedagógico dos autores dos séculos XV e XVI – a construção da memória, o controle do corpo e o fortalecimento do espírito –, reunimos um conjunto de escritos, legados por viajantes e outros letrados, que ajudaram a traduzir os mundos próximos e distantes para si próprios, por meio da rememoração, e para seus coetâneos, por meio da produção de narrativas. Entre esses escritos de matiz moralizante encontram-se, além dos relatos de viagem, as crônicas e histórias, escritos que tinham a pretensão de servir como registro verdadeiro do passado, ou seja, como uma espécie de espelho das coisas passadas segundo a ordem em que ocorreram no tempo. As fontes aqui selecionadas, pois, aproximam-se pela função comum que assumem de falar do antes para interferir no depois, de cruzar experiências para oferecer modelos. Priorizando temas relativos à governação, mas, a partir desta, transitando por outros sobre a sociedade e os modelos virtuosos e viciosos que a compunham ou que deveriam compô-la, essas fontes registraram aquilo que se julgava incontornável para ser guardado para os tempos vindouros.

As matérias a serem, nesse contexto, contempladas pela história eram aquelas que envolviam a expansão por territórios conhecidos e desconhecidos; história em parte nova, mas que manteve elos com a história anterior, universal ou régia,  nomeadamente no que diz respeito ao peso das virtudes cristãs como móbil, razão de ser do registro do passado. É esta razão de ser que, por isso mesmo, será uma das portas para o exame do vocabulário – vocabulário apreensível também através de imagens de letras e de bordas em manuscritos iluminados dos mais variados tipos (litúrgicos, literários, bíblicos, exegéticos etc.) – recorrente na fixação da memória e de valores morais exemplares. As hagiografias encontram-se igualmente entre tais formas de registro do passado, pois, apesar da sua ambição de exemplaridade e edificação – que levou alguns estudiosos a recusarem seu diálogo com a realidade –, ao se disporem a evocar o sagrado,  não disseram menos sobre as sociedades que aqueles registros sobre os reinados, as guerras e os jogos diplomáticos, pois ajudaram a construir um dos aspectos que deram forma ao Cristianismo como crença e como moral: a santidade.

Tendo em conta o objetivo de traçar a história de uma moral que vem de longa data, mas se redefine nos séculos em questão, graças ao contato dos cristãos com outros povos e, sobretudo, graças à necessidade de reforçar o ensino basilar da palavra divina por circunstância da ampliação do mundo, outro conjunto de fontes também incontornável para tentarmos tracejá-la são os tratados e manuais pedagógicos que textualizaram e ilustraram – dado o peso das imagens nesses escritos – as principais regras e conselhos que os fiéis cristãos precisavam naturalizar, fosse relativamente ao corpo, fosse relativamente ao espírito. No início da expansão ultramarina, essas obras, além de inspirarem a escrita de novos guias catequéticos para os colonos e índios da América portuguesa, ajudaram a formar os primeiros missionários cristãos de tais terras, ao legar a essa gente instrumentos e técnicas de disseminação da fé cristã. Mirando as fragilidades do corpo físico – como microcosmo do corpo social – e visando controlar os desejos para direcionar e fortalecer a vontade, esses documentos vão desde catecismos e tratados de confissão até livros sobre a preservação da saúde, passando por tratados pedagógicos sobre o corpo político ou sobre a relação entre práticas desportivas e o exercício das virtudes.

Tais questões sobre as formas de construção moral do passado, entretanto, vão certamente para além das fontes aqui selecionadas, pois o problema da escolha do que merece ser lembrado e o compromisso moralizante se colocam para quaisquer das fontes escritas medievais. Não se pode perder de vista, do mesmo modo, que, numa sociedade de poucos letrados, as formas como as narrativas e os tratados escritos contribuíram para definir valores e expectativas foram diversas, difusas e instáveis, de maneira que será indispensável examinar as frequentes retomadas de outros textos, bem como as referências à transmissão oral da memória do passado e aos mecanismos de fixação dos costumes coetâneos. Nos dois casos, a própria persistência e a fixidez de certas ideias ao longo de séculos podem ter levado à sua banalização e tê-las tornado moedas correntes, seja através da prática de leitura pública das narrativas históricas, seja através da confissão ou dos cultos, que estimulavam a recordação através da repetição.

Em suma, a seleção proposta justifica-se tanto pelo fato de que crônicas e histórias, hagiografias, tratados de confissão e livros sobre os cuidados com o corpo terem se multiplicado no período em foco, quanto por seu caráter modelar, ou seja, porque mais decisivamente contribuíram na construção de um mundo que veio a ser definido como luso- brasileiro.

A proposta de examinar um Portugal que, direta ou indiretamente, se prepara para aceder a novos mundos, não é, bem entendido, nem um exercício retrospectivo, nem tampouco uma busca das origens medievais do Brasil, o que pressuporia uma certa ideia de pré-formações na história. Buscaremos, sim, esquadrinhar um certo patrimônio moral comum, que, submetido a deslocamentos espaciais e temporais, permitiu apropriações e combinações variadas, nem sempre lineares.

A propósito desse patrimônio, o segundo núcleo irá se debruçar precisamente sobre aspectos diversos da instalação, nos trópicos, de tal repertório intelectual de matiz lusitano. Três serão os eixos que utilizaremos para captar o que poderíamos denominar um processo não contínuo nem linear de transmigração cultural. O primeiro diz respeito à constituição de um repertório de ideias morais e de normas de conduta propagados por meio de sermões, panegíricos fúnebres, descrições de festas cívicas, poesias, crônicas de ordens religiosas, cartas ânuas e outras publicações religiosas de classificação incerta. A análise de tal corpus discursivo, que praticamente esgota a produção escrita em língua portuguesa com menções ao Brasil e aos brasileiros dos séculos XVI, XVII e XVIII, pretende captar não os impactos de recepção desses discursos – ainda que seja possível demarcar minimamente o perfil de um provável leitor colonial –, mas sobretudo os contornos de um universo moral, construído por homens letrados para os seus iguais e difundidos aos grupos não letrados por meios orais e visuais.

O segundo, que corre em paralelo ao anterior, esquadrinha os diferentes caminhos construídos pelos letrados setecentistas e oitocentistas de língua portuguesa para lidar com o abrangente e estruturante tema da escravidão no mundo luso. O conjunto documental é composto por uma gama de textos que aflorou nos dois lados do Atlântico – sobretudo a partir de meados do século XVIII –, numa época de renovado interesse dos práticos e juristas lusos e brasileiros pelo direito positivo. Mais especificamente, pretende-se, lançando mão da montagem de uma longa série documental composta por manuais, tratados, dissertações, notas de uso prático, fascículos, coleções, extratos de leis, códigos comentados, dentre outros instrumentos, avançar na compreensão da construção de uma moral – marcada pelas relações escravistas – por meio da análise das complexas relações existentes entre a legislação, o direito e o cativeiro de africanos e descendentes no Brasil desde o período colonial.

O terceiro, que vem complementar e arrematar os dois eixos do segundo núcleo, trata dos escritos que, ao construírem a história do Brasil no Oitocentos e primeiras décadas do Novecentos, tomaram como documentos os textos esquadrinhados nas duas séries de escritos elencadas acima. Dito de outro modo, o repertório intelectual de matiz lusitano instalado nos trópicos colocou ao dispor dos historiadores brasileiros os elementos necessários para que edificassem as primeiras histórias nacionais inspiradas nos princípios da moderna crítica histórica que se desenvolveu no Ocidente a partir do ocaso do século XVIII. A história, como é notório, foi o saber moderno privilegiado para construir uma moral nacional e conferir sentido à vida de homens e mulheres que formaram os Estados nacionais. Pretendemos, nesse sentido, mapear uma série documental composta por textos prescritivos que construíram, em solo nacional, alguns dos parâmetros da história como ciência e, ao mesmo tempo, contribuíram para delinear os contornos do que veio a ser denominado passado nacional. Desse modo, algumas perguntas guiarão a seleção do material: quais verdades os homens letrados de fins do século XIX e início do século XX pactuaram acerca da construção do passado brasileiro? Que vocábulos do passado foram atualizados quando trataram de definir como deveria ser escrita a história? De que maneira os homens que escreviam e publicavam seus textos nesse período encaravam a sua atividade? Como delimitaram o seu fazer? Em linhas gerais, compõem o conjunto documental introduções de livros, artigos, discursos de recepção e posse proferidos em instituições relevantes daquele tempo.

Retornemos, agora, ao princípio. Pretendemos escrever uma história dos pactos morais da sociedade luso-brasileira – uma história escrita a várias mãos e contemplando um largo escopo temporal –, por meio do estudo sistemático de uma gama variada de discursos, textos e imagens: tratados prescritivos, crônicas, ordenações, manuais de confissão, sermões, histórias religiosas, histórias nacionais, hagiografias, panegíricos, descrições de festas cívicas, cartas ânuas, entre outros. Trata-se, vale destacar, de uma história dos modos de produção da verdade no interior de discursos (textos e imagens) e de uma sociedade determinada, a lusobrasileira, e não de um estudo dos mecanismos de recepção e circulação de tal conjunto de escritos e imagens; mesmo porque boa parte da documentação trabalhada pelo grupo não permite, salvo por um exercício de retrodicção, mapear os caminhos por eles percorridos. Enfim, malgrado não tenhamos o objetivo de estabelecer rotas de recepção, não nos furtaremos a tentar traçar os possíveis perfis dos leitores daqueles escritos sobre os quais nos debruçaremos.

Notas​

   GUENÉE, B. Histoire et Culture Historique dans l'Occident médiéval. Paris: Aubier Montaigne, 1980, p. 309.

  ROSA, Maria de Lurdes. A Santidade no Portugal Medieval: Narrativas E Trajectos De Vida. In: Lusitania Sacra, p. 372.

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