PERIER, Alexandre. 1651-?
Sobre o autor
O jesuíta italiano Alexandre Perier nasceu em Turim, por volta de 1651. A sua entrada para a Companhia de Jesus ocorreu por volta de 1668 e a sua profissão solene, já no Brasil, em 1686. Durante a sua estada nos trópicos, foi superior dos colégios de Cabo Frio e da Paraíba e Procurador das Missões. Perier, cogita-se, retornou para a Itália em 1715 e ainda estava vivo em 1722. De seus escritos, somente veio a público uma coletânea de discursos morais publicada em Roma, em 1724, e reeditada na cidade de Lisboa — sem as ridículas estampas da edição italiana, como determinou a Mesa Censória —, em 1752.
Obra(s)
1. Desengano dos pecadores Necessário a todo gênero de Pessoas, Utilíssimo aos Missionários, e aos Pregadores desenganados, que so desejão a salvação das Almas. Obra composta em discursos Moraes pelo padre Alexandre Perier da Companhia de Jesus Missionario da Provincia do Brasil. Roma: Na Officina de Antonio Rofsis, 1724.
2. Desengano dos Peccadores, necessario a todo gênero de pessoas, utilissimo aos missionarios, e aos Prégadores desenganados, que só desejão a salvação das Almas. Dedicado ao Serenissimo Senhor D. Manoel, Infante de Portugal. Escrito pelo R. P. Alexandre Perier Da Companhia de Jesus, e Missionario da Provincia do Brasil, Accrescentado com Huma Addiçam de um caso horrivel nesta terceira Impressão, Por Lourenço Morganti, Bibliothecario do Illustrissimo, e Reverendissimo Senhor Patriarcha I. de Lisboa Occidental. Lisboa Occidental: Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1735.
Menções ao negro e ao escravo
Uma noite, depois de se ter lentamente banqueteado, disse um deles; assaz temos hoje servido a Baco e a Vênus ( e o pior é que assim era), demos graças a Deus. Sat Baccho, libidiniqu[?]datum. Deo gratias agamus. Respondeu um deles. Eu antes darei graças ao Diabo, e parece que todos as havíamos de dar; pois ele a nós e nós a ele lhe fazemos tanto a vontade. Ego Demoni gratias aga[?] & agendum censeo cujus opus agimus. Isto assim dito levantaram-se da mesa, e cada um se foi para o seu aposento, para ir à cama. Estavam se despindo quando ouvem um grande estrondo na porta, a qual aberta logo por si entrou e apareceu um espectro agigantado com um semblante horroroso ([?] este o Demônio), e trazia após de si dois criados de menor estatura, negros e feios, que pareciam seus cozinheiros; pois um levava um grande espeto na mão, e o outro nas costas um feixe de lenha, cotando os olhos, que lançavam chamas sobre os delinquentes, disse em voz alta e medonha. [?] est, qui mihi gratias egit? Aonde está aquele que me deu as graças? (Discurso V. Do tormento do gostar, p. 116)
Nem faltam exemplos na sagrada escritura que provam e confirmam esta doutrina tão recomendada dos Santos Padres. Quando aquela senhora do Egito, mulher de Putisar, convidou ao casto mancebo José, que era seu escravo, para violar a lei conjugal do seu marido; se escusou este com mostr[?] horror a um crime, que era de alta traição contra seu amo e seu senhor. Mas quando viu que as palavras brandas, aos mimos e carinhos, ajuntaram tato, deu-se então logo por perdido, e assim buscou o último e único remédio, que era fugir, pelo que logo deu arranco e fugiu-lhe, deixando-lhe a capa nas mãos. Não há dúvida que José [?] ou bem; mas se pôs em manifesto perigo de perder a reputação, e também a vida, com deixar a ca[?] que, posta em juízo, fazia papel de corpo doo de[?], e servia de prova quase concludente do negro sentado contra sua senhora; e sucedeu assim; que a mulher vendo-se como afrontada e desprezada, temendo que José falasse, o acusou [?] grandes queixas ao marido, o qual demasiadamente crédulo, vendo a capa do servo sobre o seu [?], sem mais interrogação ou processo, não lhe [?] do a ira mais lugar, o mandou meter no fundo de um cárcere, sem nunca mais lembrar-se dele, co[?] se não fosse no mundo [...]. (Discurso VI. Do tormento do tacto, pp. 142-143)
Quem fosse visitar as galés de Nápoles, ou de Sardenha, acharia entre aquela chusma de gente três classes de escravos, uns malfeitores insignes que a justiça, por aderências, ou algum outro motivo, lhes trocou o patíbulo em ficar condenado um remo perpétuo. Outros tem a sentença por [?] anos, que pela má estância, e pior mantimento, vem reputado o mesmo que em toda a vida; e os crimes são menores, a pena também é só de quatro ou cinco anos. A terceira sorte de escravos são os que chamam voluntários. Acham-se moços vadios, que por não trabalharem, nunca quiseram aprender ofício. Para servir, ninguém quer; porque são conhecidos e inclinados uns a Baco, outros a Vênus, e como lhes falta o [?]nehiro, para comprazer aos seus vícios, buscam [?] capitão de uma galé, e pedem-lhe cinco, ou [?] moedas de ouro, e fazem-lhe obrigação por escrito de servirem de escravos na dita galé, por um, dois anos, conforme o contrato entre eles estipulado. Parte a galé, e depois de alguns meses de corso, torna ao seu porto. Quem havia de cuidar que estes forçados voluntários, tendo experimentado o sustento de biscouto negro e duto, com [?] medida de água com bichos, e um fedor intolerável da sentina, pedissem de novo dinheiro para satisfazer a sua paixão que, devendo estar senão morta, ao menos mortificada ressuscita tão faminta, que obriga os miseráveis voluntários a perpetuar-se no cativeiro! (Discurso VII. Do tormento dos soberbos, p. 184)
Já amortalhado, e preparando-se o enterro, entraram dois negros agigantados com o seu tridente na mão; e um deles disse com voz medonha: Quem [?] em compra a espada, compra também a bainha. [?] e nos vendeu a sua alma, que já está no inferno, [?] vimos buscar o corpo, porque, como foram companheiros nos gostos, o sejam também nos sofrimentos; e fincando o tridente nas ilhargas do defunto, o carregaram nos ombros, e saindo por uma janela, deixaram aos circunstantes assim [...] o medo, como pelo fedor intolerável, mais [?], que vivos. (Discurso VII. Do tormento dos soberbos, pp. 188-189)
Acham-se homens que vivem na opinião de bons católicos, se con [?] e comungam todos os meses; não ouvireis [?] uma palavra que ofenda; frequentam as confrarias; são juízes e mordomos delas; acompanham o venerável aos enfermos, e são de edificação a todos. [?] se os tocais no interesse, os achareis tão pega[?] na sua fazenda, que açoutaram os escravos como [?], só porque quebraram um vidro ou um púcaro de barro, ou porque não acabaram a sua tarefa. (p. 207)
Estão muitos negros e negras, uns forros, outros cativos, deitados sobre uma esteira em casebres desamparados de todo, e conhecendo que se lhe chega a hora da morte, cuidam em remédios ou alívios do corpo, mas pedem confissão para salvarem as suas almas. [?] algum caritativo à freguesia, acha que o pároco está mal disposto, e que o coadjutor está fora; espera por ele, e lhe responde que vá buscar confessor a algum convento, que ele não pode ir, por uma ocupação precisa. Vai ao convento, e se é noite, acha a corda da campainha amarrada, e não se pode tocar, porque os religiosos repousam; se é de dia, lhe responde o porteiro que os religiosos tem suas ocupações da ordem, que torne ao seu [?] roco, a quem toca por razão do ofício, e de justiça, pois é estipendiado. Entretanto o pobre [?] perdida a fala, e o escravo já espirando, ambos morrem sem confissão. Mas como pode ser isto? Se fosse em outras terras, me calaria; porém nas nossas conquistas e monarquia portuguesa, aonde a Igreja Católica, e o zelo de salvar as almas sobrepunha as mais nações! Não parece crível. E, contudo, assim sucede. Pois com tanto zelo e fervor para salvar a alma de um rico, correm eclesiásticos e regulares à sua casa sem serem chamados, e para [?] miserável escravo, ou para algum pobre ninguém move; todos são ocupados? Sim! Porque como [?] Jeremias. Omnes avaritiae student a Propheta que ad Sacerdotem. O rico tem que deixar, há de fazer testamento, disporá ao menos da sua terça [?] obras pias, lhe farão um enterro suntuoso; [?] um procura, que se enterre na sua igreja; ou [?] alguma capela de missas; outro algum dote para uma parenta orfão ou pobre. Omnes avaritiae stuest. (Discurso VIII. Do tormento dos Avarentos, pp. 210-211)
Quero dar fim a este parágrafo com um caso que sucedeu há mais de trinta anos, em um engenho do mato do recôncavo da cidade da Bahia. Confesso que quando me contaram, e mostraram o lugar, na primeira missão que fiz naquela paragem, me ficou de tal sorte impresso na memória, que me obrigou a escrevê-lo, para que se conheça quanto pode este vício da avareza, ainda em um eclesiástico, quando de pobre e faminto, quer entesourar dinheiros. Chegou na frota dos navios do Porto um sacerdote mal vestido e pior trajado; logo buscou de ser capelão em um engenho. Foi promovido; e o senhor do engenho vendo-o tão pobre e humilde lhe deu um negro para o servir, e um cavalo, para acudir as confissões dos aplicados à capela, além do estipêndio de quarenta mil reis, e outros tantos dos seus aplicados, e a missa cotidiana de dois tostões cada dia, que nunca lhe faltava, pois supria o senhor do engenho, para que a dissesse pelas almas dos seus defuntos. Ganhou dois ou três anos para comprar quatro ou cinco escravos, e o senhor do engenho lhe deu um pedaço de terra para plantar canas; rendia o canavial felizmente, e fazendo bom açúcar comprou mais escravos com bois e carro. Vendo-se ele com fazenda, não tratava já das confissões, nem do bem das almas; não falava senão de interesse, e de rendimentos. Toda a sua ocupação era assistir no canavial; ele fazia de feitor e juntamente de escravo, trabalhando com enxada na mão entre eles; porém o sustento era tão limitado, que não podia aturar o serviço; nem ele passava melhor, por [?] vendo os seus fregueses, que já tinha fazenda, [?] lhe mandavam mimos, e ele como avarento pa[?]va miseravelmente por não gastar dinheiro. Chegou finalmente o tempo de gozar do seu trabalho; foi o caso, que carregando o seu açúcar nos carros, para o conduzir ao porto do mar, como o caminho era cheio de lamas, sucedeu ficar o carro mergulhado em um atoleiro, sem que os bois pudessem arrancá-lo; e com a diligência um dos bois ficou também atolado. Quem disse, que os avarentos são cegos disse bem. Oh cegueira inaudita! O sacerdote para não perder o boi, resolveu-se a entrar no lamaceiro; e pondo os ombros de baixo do jugo, dizia com voz alta ao escravo que tinha a aguilh[?] na mão; deixa estar o boi; pica-me a mim; pica-me bem. O escravo pasmado da cegueira de seu senhor, e pela veneração que tinha ao cara[?] sacerdotal, picou o boi com tal violência, que fazendo um esforço para se levantar, deu com uma ponta nas costelas do sacerdote, que lhe estava ilharga puxando de baixo do jugo, que não pode dizer outra palavra senão esta. Ah, que o meu boi me matou! E este foi o ato de contrição que fez; e arrancando o boi vivo, ficou o sacerdote no atoleiro [?] avaritiae student à Propheta usque ad Sacerdotem. Assim vão acabar os avarentos. (Discurso VIII. Do tormento dos Avarentos, pp. 211-213)
Tenho conhecido muitos senhores de engenho, e outros lavradores, fazendo uma boa safra de açúcar, ou de tabaco [?] correm logo os credores muicontentes, [?] promessa, que na frota ficariam sem falta todo [?] satisfeitos. E que fazem os tais devedores? E [?] neles o Demônio fecha bolsas, com acender [?] o desejo de ser mais ricos e discorrem assim. Se pago aos meus credores nesta frota, fico sem vintém: pelo contrário, se eu lhes pagar para [?] frota, que vem, posso com este dinheiro comprar mais dez negros, e estes metidos à trabalhar no canavial, que está devoluto por falta deles, canas prodigiosas, e fará açúcares como diamante [?] e com o rendimento satisfaço aos meus credores e fico sem diminuição, antes com aumento do cabedal, cobrando nome de bom pagador, e [?] de homem verdadeiro e rico. Os mercadores e outros cobiçosos fazem o mesmo negócio [?] reter o alheio discorrendo do mesmo modo. [?] convém a um homem de negócio ficar com a c[?] sem dinheiro; pois o dinheiro é a alma do negócio. Se eu pago agora estas dívidas, fica a cai[?] vazia, e se detenho por este ano o pagamento com o dinheiro que me ficar, posso em um [?]lão comprar um lote de negros, ou uma parti[?] de fazendas secas, e vendendo depois parte d [?] com o ganho de trinta ou quarenta por cento, [?] no a prover a caixa; e com as que ficam mais [?] nos acomodarei os meus credores, dizendo que não haver dinheiro, que ouro é o que [?] vale; e por tanto não deixe de remediar cada [?] a sua necessidade, com as fazendas que ele pe[?] que todas estão à sua ordem. O pobre credor, tem os filhos rotos e despidos; os escravos [?], e necessita de outro par de escravos, para o [?] no seu trabalho, e para lhe carregarem [?] pode de água; estima por favor receber o que dá o mercador ao preço que quer; e por não [?] em uma demanda, perder o tempo e gastar quanto tem, torna à sua casa amaldiçoando tal [?], e diz a mulher e filhos. Paciência! (Discurso VIII. Do tormento dos Avarentos, pp. 228-229)
Si potest Ethiops mu[?] pellem, aut Pardus varietates: & vos pote[?] benefacere, cum didiceritis malum? Assim como não pode um negro mudar a cor da sua pele, nem um leopardo a variedade das suas cores, assim não [?]xara o pecado um pecador habituado. Todas as águas dos rios e sabão de Europa, lavando um etíope, não o farão branco: donde nasceu o provérbio Ethiopem lavat. Todos os avisos, repreensões, ameaças e castigos não acabam com um pecador habituado na sensualidade à [?]gar o seu pecado. Mas porque se serve o profeta das duas comparações, do etíope e do pardo? Não bastava a primeira para explicar o [?] tento? Não: porque na segunda se contém uma boa doutrina. As manchas do Leopardo se podem tirar cortando e raspando-lhe todos os cabelos da pele: mas crescendo outra vez os cabelos, [?] não outra vez as manchas. O mesmo sucede e [?] um sensual habituado. (Discurso IX. Do tormento dos Luxuriosos, p. 264)
Se o inferno fosse capaz de alguma consolação aqueles gentios, aqueles negros boçais, aqueles índios idiotas e bárbaros, que estão no inferno poderiam dizer. Estamos penando. E que penas! E que dores! E que tormentos tais e tantos, que só quem está aqui, e os padece, pode dar conta deles! E, contudo, não tivemos o lume da fé, nem [?] da a facilidade e cômodo para salvarmos as nossas almas. Tenho perdido a Deus (diria algum deles); mas posso afirmar que quase não o conheci senão com o remorso da sindérese, que me fazia distinguir o bem do mal. Ah, que se eu o tivera conhecido, como os cristão, não estaria nesses tormentos! Confesso na verdade, que tive a graça [?]ciente, para obrar bem, e salvar-me; mas que [?] ito podia fazer esta graça suficiente vivendo eu [?] selvagens, que mais pareciam bestas que homens. Devia seguir a luz da razão, assim é; mas que luzes podia ter um entendimento rude, sem dis[?]; uma razão inculta, sem estudo, sem letras, sem instrução! Ah, que se Deus tivesse permitido, e viesse um missionário e me alumiasse com a doutrina do Evangelho, não estaria agora penando no inferno. Considere agora o pio leitor, que tormento será para um cristão condenado, para um católico que tem vivido no grêmio da Igreja; muito mais se este católico foi nascido e criado em Portugal, que é o reino pela piedade, e [?]reza da fé mais amado de Deus; fide purum, & [?] tate dilectum. (Discurso XII. Do tormento da pena do dano, pp. 346-347)
Para bem entender que tormento seja o do verme na consciência, e porque causa Deus o tem escolhido por um dos principais instrumentos da sua ira, para se vingar com mais furor dos seus inimigos, convém saber que não há homem no mundo, que não tenha alguma luz da divindade; e assim por bárbaro e ignorante, que seja um índio ou tapuia do Brasil; por boçal ou selvagem, que seja um negro Mina ou de Angola, sempre terá algum barlume ou alguma inclinação de venerar e temer o seu Tupã o seu Zambi, que nas suas línguas Brazis e Caffres soa o mesmo que Deus, verificando-se o que diz o profeta rei. Signatum est su[?] nos, lumen vultus tui Domine. (Discurso XIII. Do tormento da desesperação, p. 375)
2.
Uma noite, depois de se ter lentamente banqueteado, disse um deles, assaz temos hoje servido a Baco e a Vênus (e o pior é, que assim era) demos graças a Deus: Sat Baccho, libidinique datum: Deo gratias agamus. Respondeu um deles. Eu antes darei graças ao Diabo, e parece que todos as havíamos de dar; pois ele a nós, e nós a ele lhe fazemos tanto a vontade: Ego Domini gratia ago, & agendum censeo, cujus opus agimus. Isto assim dito, levantaram-se da mesa, e cada um se foi para o seu aposento, para ir a cama. Estavam se despindo, quando ouvem um grande estrondo na porta, a qual aberta logo por si entrou e apareceu um espectro agigantado com um semblante horroroso (era este o Demônio) e trazia após si dois criados de menor estatura, negros e feios, que pareciam ser cozinheiros, pois um levava um grande espeto na mão, e o outro nas costas um feixe de lenha, e botando os olhos que lançavam chamas sobre os três delinquentes, disse em voz alta e medonha: Ubi est, qui mihi gratia egit? Aonde está aquele que me deu as graças? ( Discurso V. Do tormento do gostar, p. 116)
Nem faltam exemplos na Sagrada Escritura que provam e confirmam esta doutrina tão recomendada dos Santos Padres. Quando aquela senhora do Egito, mulher de Putifar, convidou ao casto mancebo José, que era seu escravo, para violar o leito conjugal do seu marido; se escusou este com mostrar horror a um crime que era de alta traição contra seu amo e senhor. Mas quando viu que as palavras brandas, aos mimos e carinhos, ajuntaram o tato, deu-se então logo por perdido, e assim buscou o último e único remédio, que era o fugir; pelo que logo deu um arranco e fugiu-lhe; deixando-lhe a capa nas mãos. Não há dúvida que José obrou bem; mas se pôs em manifesto perigo de perder a sua reputação, e também a vida, com deixar a capa que posta em juízo, fazia papel de corpo do delito, e servia de prova quase concludente do negro atentado contra sua senhora, e sucedeu assim; porque a mulher vendo-se como afrontada e desprezada, temendo que José falasse, o acusou com grandes queixas ao marido, o qual demasiadamente crédulo, vendo a capa do servo sobre o seu leito, sem mais interrogação ou processo, não lhe dando a ira mais lugar, o mandou meter no fundo de um cárcere, sem nunca mais lembrar-se dele, como se não fosse no mundo [...] (Discurso VI. Do tormento do Tacto, pp. 142-143)
Quem fosse visitar as galés de Nápoles, ou de Sardenha, acharia entre aquela chusma de gente três classes de escravos, uns malfeitores insignes que a justiça, por aderências, ou algum outro motivo, lhes trocou o patíbulo em ficar condenado um remo perpétuo. Outros tem a sentença por dez anos, que pela má estância, e pior mantimento, vem reputado o mesmo que em toda a vida; e os crimes são menores, a pena também é só de quatro ou cinco anos. A terceira sorte de escravos são os que chamam voluntários. Acham-se moços vadios, que por não trabalharem, nunca quiseram aprender ofício. Para servir, ninguém quer; porque são conhecidos e inclinados uns a Baco, outros a Vênus, e como lhes falta o dinheiro, para comprazer aos seus vícios, buscam o capitão de uma galé, e pedem-lhe cinco, ou seis moedas de ouro, e fazem-lhe obrigação por escrito de servirem de escravos na dita galé, por um, dois anos, conforme o contrato entre eles estipulado. Parte a galé, e depois de alguns meses de corso, torna ao seu porto. Quem havia de cuidar que estes forçados voluntários, tendo experimentado o sustento de biscouto negro e duto, com uma medida de água com bichos, e um fedor intolerável da sentina, pedissem de novo dinheiro para satisfazer a sua paixão que, devendo estar senão morta, ao menos mortificada ressuscita tão faminta, que obriga os miseráveis voluntários a perpetuar-se no cativeiro! (Discurso VII. Do tormento dos soberbos, p. 184)
Já amortalhado, e preparando-se o enterro, entraram dois negros agigantados com o seu tridente na mão; e um deles disse com voz medonha: Quem compra a espada, compra também a bainha. Este nos vendeu a sua alma, que já está no inferno, agora vimos buscar o corpo, porque, como foram companheiros nos gostos, o sejam também nos sofrimentos; e fincando o tridente nas ilhargas do defunto, o carregaram nos ombros, e saindo por uma janela, deixaram aos circunstantes assim pelo medo, como pelo fedor intolerável, mais mortos, que vivos. (Discurso VII. Do tormento dos soberbos, pp. 188-189)
Acham-se homens que vivem na opinião de bons católicos, se confessam e comungam todos os meses; não ouvireis deles uma palavra que ofenda; frequentam as confrarias, são juízes e mordomos delas, acompanham o venerável aos enfermos, e são de edificação a todos. Porém, se os tocais no interesse, os achareis tão pegados na sua fazenda, que açoitaram os escravos como tiranos, só porque quebraram um vidro ou um púcaro de barro, ou porque não acabaram a sua tarefa: Omnes avaritiae student à minore usque ad maiorem. (p. 207)
Estão muitos negros e negras, uns forros, outros cativos, deitados sobre uma esteira em casebres desamparados de todo, e conhecendo que se lhe chega a hora da morte, cuidam em remédios ou alívios do corpo, mas pedem confissão para salvarem as suas almas. Vai algum caritativo à freguesia, acha que o pároco está mal disposto, e que o coadjutor está fora; espera por ele, e lhe responde que vá buscar confessor a algum convento, que ele não pode ir, por uma ocupação precisa. Vai ao convento, e se é noite, acha a corda da campainha amarrada, e não se pode tocar, porque os religiosos repousam; se é de dia, lhe responde o porteiro que os religiosos têm suas ocupações da ordem, que torne ao seu pároco, a quem toca por razão do ofício, e de justiça, pois é estipendiado. Entretanto o pobre já perdida a fala, e o escravo já espirando, ambos morrem sem confissão. Mas como pode ser isto? Se fosse em outras terras, me calaria; porém nas nossas conquistas e monarquia portuguesa, aonde a Igreja Católica, e o zelo de salvar as almas sobrepunha as mais nações! Não parece crível. E, contudo, assim sucede. Pois com tanto zelo e fervor para salvar a alma de um rico, correm eclesiásticos e regulares à sua casa sem serem chamados, e para o miserável escravo, ou para algum pobre ninguém move; todos são ocupados? Sim! Porque como diz Jeremias. Omnes avaritiae student a Propheta que ad Sacerdotem. O rico tem que deixar, há de fazer testamento, disporá ao menos da sua terça em obras pias, lhe farão um enterro suntuoso; cada um procura, que se enterre na sua igreja; ou outro alguma capela de missas; outro algum dote para uma parenta órfão ou pobre. Omnes avaritiae stuest. (Discurso VIII. Do tormento dos Avarentos, pp. 210-211)
Quero dar fim a este parágrafo com um caso que sucedeu há mais de trinta anos, em um engenho do mato do recôncavo da cidade da Bahia. Confesso que quando me contaram, e mostraram o lugar, na primeira missão que fiz naquela paragem, me ficou de tal sorte impresso na memória, que me obrigou a escrevê-lo, para que se conheça quanto pode este vício da avareza, ainda em um eclesiástico, quando de pobre e faminto, quer entesourar dinheiros. Chegou na frota dos navios do Porto um sacerdote mal vestido e pior trajado; logo buscou de ser capelão em um engenho. Foi promovido; e o senhor do engenho vendo-o tão pobre e humilde lhe deu um negro para o servir, e um cavalo, para acudir as confissões dos aplicados à capela, além do estipêndio de quarenta mil reis, e outros tantos dos seus aplicados, e a missa cotidiana de dois tostões cada dia, que nunca lhe faltava, pois supria o senhor do engenho, para que a dissesse pelas almas dos seus defuntos. Ganhou dois ou três anos para comprar quatro ou cinco escravos, e o senhor do engenho lhe deu um pedaço de terra para plantar canas; rendia o canavial felizmente, e fazendo bom açúcar comprou mais escravos com bois e carro. Vendo-se ele com fazenda, não tratava já das confissões, nem do bem das almas; não falava senão de interesse, e de rendimentos. Toda a sua ocupação era assistir no canavial; ele fazia de feitor e juntamente de escravo, trabalhando com enxada na mão entre eles; porém o sustento era tão limitado, que não podia aturar o serviço; nem ele passava melhor, porque vendo os seus fregueses, que já tinha fazenda, não lhe mandavam mimos, e ele como avarento passava miseravelmente por não gastar dinheiro. Chegou finalmente o tempo de gozar do seu trabalho; foi o caso, que carregando o seu açúcar nos carros, para o conduzir ao porto do mar, como o caminho era cheio de lamas, sucedeu ficar o carro mergulhado em um atoleiro, sem que os bois pudessem arrancá-lo; e com a diligência um dos bois ficou também atolado. Quem disse, que os avarentos são cegos disse bem. Oh cegueira inaudita! O sacerdote para não perder o boi, resolveu-se a entrar no lamaceiro; e pondo os ombros de baixo do jugo, dizia com voz alta ao escravo que tinha a aguilhada na mão; deixa estar o boi; pica-me a mim; pica-me bem. O escravo pasmado da cegueira de seu senhor, e pela veneração que tinha ao caráter sacerdotal, picou o boi com tal violência, que fazendo um esforço para se levantar, deu com uma ponta nas costelas do sacerdote, que lhe estava ilharga puxando de baixo do jugo, que não pode dizer outra palavra senão esta. Ah, que o meu boi me matou! E este foi o ato de contrição que fez; e arrancando o boi vivo, ficou o sacerdote no atoleiro morto. Omnes avaritiae student à Propheta usque ad Sacerdotem. Assim vão acabar os avarentos. (Discurso VIII. Do tormento dos Avarentos, pp. 211-213)
Tenho conhecido muitos senhores de engenho, e outros lavradores, fazendo uma boa safra de açúcar, ou de tabacos, correm logo os credores mui contentes, pela promessa, que na frota ficariam sem falta todos satisfeitos. E que fazem os tais devedores? Entra neles o Demônio fecha bolsas, com ascender-lhes o desejo de ser mais ricos e discorrem assim. Se pago aos meus credores nesta frota, fico sem vintém: pelo contrário, se eu lhes pagar para a frota, que vem, posso com este dinheiro comprar mais dez negros, e estes metidos à trabalhar no canavial, que está devoluto por falta deles, canas prodigiosas, e fará açúcares como diamantes, e com o rendimento satisfaço aos meus credores e fico sem diminuição, antes com aumento do cabedal, cobrando nome de bom pagador, e fama de homem verdadeiro e rico. Os mercadores e outros cobiçosos fazem o mesmo negócio com reter o alheio discorrendo do mesmo modo. Não convém a um homem de negócio ficar com a caixa sem dinheiro; pois o dinheiro é a alma do negócio. Se eu pago agora estas dívidas, fica a caixa vazia, e se detenho por este ano o pagamento com o dinheiro que me ficar, posso em um leilão comprar um lote de negros, ou uma partida de fazendas secas, e vendendo depois parte delas com o ganho de trinta ou quarenta por cento, torno a prover a caixa; e com as que ficam mais somenos nos acomodarei os meus credores, dizendo que não haver dinheiro, que ouro é o que ouro vale; e por tanto não deixe de remediar cada um a sua necessidade, com as fazendas que ele possui, que todas estão à sua ordem. O pobre credor, tem os filhos rotos e despidos; os escravos como nus, e necessita de outro par de escravos, para o ajudarem no seu trabalho, e para lhe carregarem um pode de água; estima por favor receber o que dá o mercador ao preço que quer; e por não entrar em uma demanda, perder o tempo e gastar quanto tem, torna à sua casa amaldiçoando tal homem, e diz a mulher e filhos. Paciência! (Discurso VIII. Do tormento dos Avarentos, pp. 228-229)
Si potest Ethiops mutare pellem, aut Pardus varietates: & vos poteritis benefacere, cum didiceritis malum? Assim como não pode um negro mudar a cor da sua pele, nem um leopardo a variedade das suas cores, assim não deixará o pecado um pecador habituado. Todas as águas dos rios e sabão de Europa, lavando um etíope, não o farão branco: donde nasceu o provérbio Ethiopem lavat. Todos os avisos, repreensões, ameaças e castigos não acabam com um pecador habituado na sensualidade à lagar o seu pecado. Mas porque se serve o profeta das duas comparações, do etíope e do pardo? Não bastava a primeira para explicar o intento? Não: porque na segunda se contém uma boa doutrina. As manchas do Leopardo se podem tirar cortando e raspando-lhe todos os cabelos da pele: mas crescendo outra vez os cabelos, tornam outra vez as manchas. O mesmo sucede em um sensual habituado. (Discurso IX. Do tormento dos Luxuriosos, p. 264)
Eu aqui movido de compaixão e zelo, me sinto inspirado a advertir algumas coisas sobre a tirania e mau tratamento que no Brasil e em outras conquistas do reino de Portugal se usa com os escravos. Oh quantos senhores de engenho, feitores mores e lavradores de fazendas estão no inferno pela crueldade e mau trato que tem dado aos seus escravos! Primeiramente não lhes dão outro vestido mais que aquele que tem Cristo crucificado na cruz, nem modo, nem tempo para o ganhar. Querem cada dia dele o serviço completo, e às vezes sobre as forças e em faltando açoites sobre açoites, e não lhes dão o sustento para terem forças para trabalharem. Dizem que lhes dão o domingo livre para plantarem o seu milho, para se sustentarem; e enquanto o milho se planta, nasce e cresce que hão eles de comer? E se Deus ordena que o domingo se guarde e não se trabalhe, com que consciência sois causa de que eles trabalhem. (pp. 297-298)
Os escravos que trabalham toda a semana com tanto rigor, quando hão de descansar? Os escravos trabalhando, para se sustentar, no domingo, não pecam porque não podem de outro modo remediar a sua necessidade: mas os senhores que pelo interesse de mais açúcar e tabaco, os metem nesta necessidade, darão estreita conta a Deus e serão rigorosamente castigados, como diz S. Paulo: Paenas dabunt in interitu aeternas. Muito mais é castigarem os escravos e as escravas; estas porque não querem levar tais recados ou porque não querem ou não podem induzir ao pecado. (p. 298)
Bem sei que os que assim maltratam os escravos, dão por escusa o seu natural colérico, que por qualquer coisa o seu natural colérico, que por qualquer coisa se ascende em fogo, porém dizem que é fogo de palha, que tudo é chama que não dura nada e logo se apaga. (p. 299)
Não basta não usar de tiranias e crueldades com os servos e escravos, mas é também necessário não os maltratar de palavra, com injurias e nomes execrandos. É já inveterado o desprezo destes pobres cativos; e não só o senhor, mas qualquer vil feitor quando chama um escravo e este não acode, logo prorrompe em uma torrente de nomes e vocábulos afrontosos e injuriosos; e ainda que os pobres escravos não respondam palavra para evitarem talvez uma tempestade de açoites, sentem, contudo, e deploram a sua infeliz sorte de se verem mais aperreados entre a nação portuguesa que é a flor da cristandade, do que seria entre os mouros de Berberia. E é certo que na Bebéria se usa talvez de maior caridade assim no sustento, como nas enfermidades dos escravos, ao menos pelo interesse do resgate, quando falta a compaixão natural ou outro motivo divino. E o pior é que, raro será o senhor que se confesse destas injurias ditas aos seus escravos, e se algum o fará como por escrúpulo, é sem ânimo de se emendar, lançando sempre a culpa aos mesmos escravos, a cuja malignidade atribuem as suas iras e raivas. (pp. 301-302)
Oh, que tormento e confusão de um senhor e de um oficial em ver o seu escravo ou escrava que ultrajou e perseguiu no dia do juízo a mão direita de Deus entre os bem-aventurados, gozando de uma alegria inexplicável, Laetitia inenarrabili; vendo-se a si colocado a mão esquerda, feio e aborrecido de todos como vaso de abominação, esperando a sua final sentença de condenação: Ite maledicti in ingnem aeternum. (p. 304)
Se o inferno fosse capaz de alguma consolação aqueles gentios, aqueles negros boçais, aqueles índios idiotas e bárbaros, que estão no inferno poderiam dizer. Estamos penando. E que penas! E que dores! E que tormentos tais e tantos, que só quem está aqui, e os padece, pode dar conta deles! E, contudo, não tivemos o lume da fé, nem toda a facilidade e cômodo para salvarmos as nossas almas. Tenho perdido a Deus (diria algum deles); mas posso afirmar que quase não o conheci senão com o remorso da sindérese, que me fazia distinguir o bem do mal. Ah, que se eu o tivera conhecido, como os cristãos, não estaria nesses tormentos! Confesso na verdade, que tive a graça suficiente, para obrar bem, e salvar-me; mas que efeito podia fazer esta graça suficiente vivendo eu entre selvagens, que mais pareciam bestas que homens. Devia seguir a luz da razão, assim é; mas que luzes podia ter um entendimento rude, sem discurso; uma razão inculta, sem estudo, sem letras, sem instrução! Ah, que se Deus tivesse permitido, e viesse um missionário e me alumiasse com a doutrina do Evangelho, não estaria agora penando no inferno. Considere agora o pio leitor, que tormento será para um cristão condenado, para um católico que tem vivido no grêmio da Igreja; muito mais se este católico foi nascido e criado em Portugal, que é o reino pela piedade, e pureza da fé mais amado de Deus; fide purum, & pictate dilectum. (Discurso XII. Do tormento da pena do dano, pp. 346-347)
Para bem entender que tormento seja o do verme na consciência, e porque causa Deus o tem escolhido por um dos principais instrumentos da sua ira, para se vingar com mais furor dos seus inimigos, convém saber que não há homem no mundo, que não tenha alguma luz da divindade; e assim por bárbaro e ignorante, que seja um índio ou tapuia do Brasil; por boçal ou selvagem, que seja um negro Mina ou de Angola, sempre terá algum barlume ou alguma inclinação de venerar e temer o seu Tupã o seu Zambi, que nas suas línguas Brazis e Caffres soa o mesmo que Deus, verificando-se o que diz o profeta rei. Signatum est super nos, lumen vultus tui Domine. (Discurso XIII. Do tormento da desesperação, p. 375)
Páginas
Obra 1: 116, 142, 143, 184, 188, 189, 207, 210, 211, 212, 213, 228, 229, 264, 346, 347, 375.
Obra 2: 116, 142, 143, 184, 188, 189, 210, 211, 212, 213, 228, 229, 264, 346, 347, 375.